Considerações sobre o comportamento otaku, o fenômeno hikikomori e as possíveis ligações com transtornos de desenvolvimento neurológico.
Ao longo do tempo, especialmente no Ocidente, o termo otaku tem sido celebrado como algo que identifica os fãs de mangá, animê ou de cultura pop japonesa em geral. No entanto, como é do conhecimento dos leitores deste site, o termo surgiu no Japão como algo pejorativo.
A palavra "otaku", grafada tradicionalmente com o alfabeto fonético hiraganá (desta forma: おたく) ou usando um ideograma kanji (お宅) transmite o significado original de "sua casa", ou "seu lar". Então, o articulista japonês Akio Nakamori, em 1983, grafou a palavra com o alfabeto fonético katakaná (オタク), usado para grafar termos e nomes estrangeiros, a fim de atribuir um novo sentido à palavra. Sua ideia era identificar um fenômeno urbano que observava, o das pessoas antissociais que se dedicavam a um passatempo de forma exagerada.
Surgiu assim a moderna definição de otaku, para nomear alguém fechado em si mesmo e que troca interações sociais por um hobby. A pessoa seria sua própria "casa", como se estivesse fechada mentalmente em um casulo. Ou seja, evitaria uma vida social e se recolheria em si mesmo, devotando sua vida a algum tipo de passatempo qualquer. Mas não seria no sentido usual, de algo para relaxar nas horas vagas, mas sim uma alta especialização, vivendo no consumismo desenfreado desse hobby e ocupando sua mente com tudo a ele relacionado. Com o passar dos anos, especialmente a partir dos EUA, a comunidade de fãs de mangá, animê e cultura pop japonesa abraçou o termo, dando-lhe um significado mais positivo e animado.
Como se nota, o conceito de otaku muda bastante entre o Ocidente e o Japão. Mesmo lá, já houve uma tentativa de ressignificar a palavra, via alteração em dicionário, procurando atenuar o lado negativo, transformando o que seria uma obsessão em uma "especialização". A sétima edição do Dicionário Japonês Iwanami, lançada em 2011, ainda definia "otaku" como sendo uma "pessoa que se isola em seu mundo limitado e voltado para o hobby e evita a interação social com os outros". Já a oitava edição, lançada em 2019, registra que "otaku" é "uma pessoa que ama profundamente um campo de hobby específico, possui e coleta conhecimento ou itens relacionados a esse campo e realiza ações além da média”. Ou seja, seria apenas um tipo de especialista apaixonado em algum assunto. A mudança foi bastante contestada, pois estava apenas ocultando o problema, pela simples supressão do sentido pejorativo.
Em certos casos, o amor exacerbado por um assunto dá lugar a algo chamado de hiperfoco, uma imersão tão intensa que prejudica outras atividades, mesmo nos estudos, no trabalho ou até nas relações familiares.
Esse comportamento antissocial com hiperfoco em algum tema específico, comum no otaku "clássico" japonês, é algo facilmente associado a características presentes em portadores do chamado TEA - Transtorno do Espectro Autista. Para muitos, o otaku praticaria uma fuga da realidade, refugiando-se em um mundo de fantasia o máximo que puder, e o tanto quanto seu dinheiro permitir. Note que esse interesse exacerbado, tal qual no sentido original de otaku, se faz presente também no TEA, mas as motivações são diferentes.
Segundo a psicóloga Ceres Alves de Araújo: "No caso de um desenvolvimento dito padrão, estabelece-se desde o início da vida uma relação de apego por identificação com a pessoa que cuida. A criança com autismo não tem o mesmo interesse por pessoas que a criança padrão. Ela se liga aos objetos, aos padrões que se repetem e, dessa forma, estrutura a mente de um modo diferente. Assim, o apego aos interesses específicos não é uma fuga da realidade. Não existe uma realidade para fugir. A criança se volta diretamente ao objeto de interesse. E vai estabelecer com o humano uma relação de apego por segurança e não por filiação."
Assim, o hiperfoco e o interesse acima da média são coisas diferentes em termos de apego, mas perante o mundo externo, podem muitas vezes soar como semelhantes. Pode ser ficção científica, quadrinhos, dinossauros, games, uma banda de rock, miniaturas de trens ou qualquer coisa que desperte interesse, o que acontece também com o otaku clássico, não necessariamente um fã de mangá, animê e cultura pop.
No caso dos portadores de TEA, é comum que haja ansiedade e desconforto devido a uma sobrecarga sensorial causada por situações como estar em lugares barulhentos, ou em uma sala com discussões acaloradas acontecendo. Logo, pessoas assim passam a evitar festas e agitação, preferindo ficar mais em casa. O quadro tem se tornado cada vez mais comum.
Apesar do aumento nos diagnósticos, talvez não esteja acontecendo uma explosão nos casos de autismo, ou mesmo uma visibilidade forçada para empurrar medicamentos ao público; apesar desta última preocupação ter uma razão de ser, dado o grande número de diagnósticos errados notados por muitos profissionais. O que tem acontecido é que os estudos sobre os transtornos mentais têm evoluído bastante, permitindo uma melhor classificação, diagnóstico e entendimento de características muitas vezes associadas a comportamentos excêntricos e antissociais motivados por temperamento. Ou seja: no passado, muita gente podia ter um grau leve de TEA, mas isso nunca foi descoberto.
Entretanto, tem sido observado mesmo um aumento considerável na incidência de casos de autismo nos últimos anos, e as causas têm sido debatidas entre especialistas. Muitos podem ser os fatores envolvidos, incluindo a idade dos pais (pessoas tendo filhos cada vez mais tarde), hábitos alimentares e efeitos colaterais de variados produtos da indústria farmacêutica. Não há estudos conclusivos ou confiáveis ainda, apenas hipóteses.
O autismo, conforme os estudos mais recentes, possui três graus básicos, de acordo com sua necessidade de suporte ou auxílio. O autismo de grau 1, o mais leve, era conhecido anteriormente como Síndrome de Asperger [*], sendo que é comum que seus portadores sejam pessoas capazes, conseguindo trabalhar e formar família. Mas, para isso, precisam de um apoio e acompanhamento específicos. Quanto mais cedo o diagnóstico, mais pode ser feito pelo portador do transtorno. [*] Nota: Elon Musk se diz portador de Asperger, mas isso é questionável, pois dificilmente ele teria as habilidades de liderança e negociação como empresário com tal condição.
Também não é raro que o TEA seja combinado com outras neurodivergências, como o TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou mesmo o que se chama Altas Habilidades/ Super Dotação (AH/SD), sendo que esta última não é considerada um distúrbio e não está incluída no CID - Cadastro Internacional de Doenças.
Relativamente comum nas raras pessoas com QI acima de 130, o AH/SD é estudado pelo fato de que, em muitos casos, a velocidade de processamento mental é acompanhada de variados níveis de ansiedade ou comportamento antissocial. Como depressão, ansiedade e comportamentos antissociais podem estar ligados tanto ao TEA quanto ao TDAH e AH/SD (ou ainda combinações), o teste que diagnostica tudo isso só pode ser feito por um profissional com especialização em neuropsicologia. Isso se dá após várias entrevistas com o paciente e pessoas próximas. Ainda assim, um laudo desse tipo deve ser avaliado e confirmado por um médico psiquiatra para ter validade legal, visto que há leis que visam proteger as pessoas com autismo de acordo com o grau de suporte que necessitam. Como se pode ver, não é um assunto simples, e é possível que o modelo de otaku clássico se enquadre em qualquer das definições mencionadas, ou que possa sofrer influência de alguma característica neurológica.
Novamente, vale ressaltar que não se está estigmatizando um gosto ou uma paixão exacerbada, e sim buscando entender que existem casos que podem envolver transtornos de desenvolvimento neurológico. Essas classificações podem necessitar de terapia ou medicações específicas. Diagnosticar corretamente pode fazer a diferença entre levar uma vida quase normal ou se afundar cada vez mais na depressão e isolamento.
Voltando à relação entre o otaku clássico no modelo japonês e o comportamento autista, parece fazer todo o sentido crer que, em muitos casos, o comportamento otaku tenha elementos do TEA.
No Japão, foi identificado também o fenômeno dos hikikomori (引きこもり), que são as pessoas que optaram por nunca mais colocar os pés fora de casa, por sofrerem de intensa fobia social.
Apesar de não serem coisas diretamente relacionadas, muitos hikikomori tinham inicialmente um comportamento otaku (algum grau de isolamento social e obsessão por algum hobby) e, sem investigação ou tratamento adequados, foram piorando a forma como lidavam com o mundo externo, até resolverem renunciar a ele. Muitos se tornaram hikikomori por decorrência de um trauma, outros por um processo de isolamento progressivo causado por ansiedade, fobias e depressão, o que é algo sempre doloroso.
Segundo levantamento do governo japonês datado de março de 2023, existem cerca de 1 milhão e 460 mil hikikomori no país (a maioria de homens). Geralmente moram com os pais, que são seus provedores, mas quando estes falecerem, o horizonte ficará ainda mais difícil. É importante frisar que o comportamento hikikomori não é exclusivo do Japão, mas lá é sem dúvida o lugar onde isso já se tornou uma questão social preocupante.
O grande problema, que acompanha todo portador de alguma neurodivergência, é o diagnóstico tardio ou nunca feito. Parte disso decorre do fato de o Japão ter uma cultura onde é considerado errado compartilhar seus problemas. Tradicionalmente, cada japonês é ensinado a "não incomodar os outros" com seus dramas e sofrimentos, e isso se estende ao lar, gerando falta de diálogo familiar. As escolas também são geralmente omissas ao defender estudantes vulneráveis da prática do iijime, o brutal bullying japonês, que anualmente leva muitas crianças e adolescentes ao suicídio.
Tanto o fenômeno otaku quanto o hikikomori, são geralmente analisados do ponto de vista sociológico, ou relacionados somente a fobias sociais. Porém, suas origens e tratamentos à luz da psicologia e psiquiatria são temas pouco abordados no Japão. Parece haver uma escassez de profissionais de saúde mental no Japão, pela tradicionalmente baixa procura na sociedade, motivada por questões culturais.
Com avaliações e diagnósticos aplicados corretamente, com o acolhimento e os tratamentos adequados a cada indivíduo, talvez muitos casos graves poderiam ter sido bem tratados antes de evoluírem para algo pior. Da mesma forma, muitas pessoas poderiam ter tido uma vida mais produtiva e muito menos sofrida se tivessem buscado tratamento e encontrado profissionais capacitados. .
O problema da saúde mental é global, mas nesse aspecto, o país que gerou a cultura otaku e identificou o fenômeno hikikomori, está em desvantagem.
Um país visto como modelo em diversas áreas do conhecimento deveria voltar seus olhos para questões de saúde mental, incentivando as pessoas a buscarem ajuda. A barreira cultural, infelizmente, é grande e difícil de ser enfrentada. O preconceito contra questões de saúde mental, é importante frisar, ocorre em todos os países do mundo e atinge todas as classes sociais.
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