A relação muitas vezes complicada entre autores de mangá e os estúdios que adaptam suas obras.
Sempre que um mangá de sucesso ganha versão em animê ou live-action, é grande o temor e o debate entre os fãs. Especialmente quando é uma adaptação ocidental, mudanças de abordagem ou interpretação de fatos e personagens acabam irritando toda uma base de entusiastas, que passam a brigar e xingar nas redes sociais.
Em meio a tudo isso, autores raramente conseguem dar algum palpite. Assim como acontece com produções americanas, quando um estúdio licencia uma obra para adaptação para outra mídia, o autor perde totalmente o controle criativo. O que é comentado aqui se refere especificamente às obras japonesas, mas em linhas gerais é o que acontece também no resto do mundo.
No Japão, a prática mais comum é a de que o criador receba um pagamento único para autorizar uma adaptação em outra mídia. Assim, não importa se a bilheteria do filme render um ou 100 milhões de dólares, o autor não vai ganhar a mais por isso. O faturamento acaba vindo de uma porcentagem da venda de produtos licenciados, mas não da bilheteria ou venda direta da obra em si. Isso vale para qualquer adaptação de mangá, seja um animê, seja um live-action feito no Japão ou nos EUA.
Os valores variam muito no ocidente, mas no caso do Japão, já foi revelado por alguns autores que o valor é único. No caso de mangás, os royalties são sempre divididos entre autor e editora. O mangá de Dragon Ball, por exemplo, tem copyright para o Bird Studio (de Akira Toriyama) e a editora Shueisha, que dividem a arrecadação pela venda dos volumes compilando as histórias. Na parte do animê, os direitos pertencem à Toei Animation, que pode ou não repassar uma parte à Shueisha e a Toriyama, dependendo do contrato, que pode ser por série, filme, ou produção de algum especial.
Em Dragon Ball, Akira Toriyama acabou se envolvendo também com algumas adaptações, e no caso de material inédito em animê, foi contratado como roteirista e character designer, como aconteceu no longa Dragon Ball Super: Super Hero, de 2022. Esse envolvimento acaba atraindo ainda mais interesse da base de fãs mais fieis.
Em toda adaptação, as partes envolvidas têm acordos sigilosos, mas algumas coisas aparecem ao longo do tempo.
Um exemplo sobre a relação (ou falta dela) entre criadores e estúdios vazou espontaneamente em 1992, quando foi lançada a versão animê do mangá Video Girl Ai, de Masakazu Katsura. Com um sucesso razoável na Shonen Jump, onde havia estreado em 1989, Video Girl ganhou uma minissérie em animê de seis episódios, realizada pelo estúdio Production I.G.
Junto com cada capítulo, vendido em fitas VHS, havia um complemento sobre bastidores da produção. No penúltimo volume, surge o autor Masakazu Katsura comentando que estava ansioso para saber como a história ia terminar. Sim, é isso mesmo: O autor não sabia como a história do animê ia terminar, se seria fiel ao mangá, se seguiria por outro caminho e por aí vai. Isso deu uma ideia de que ele não teve contato com os produtores do animê, a negociação deve ter acontecido entre o estúdio e a Shueisha, e ele apenas assinou o contrato.
Mais controle teve Leiji Matsumoto com a primeira temporada do Yamato - Patrulha Estelar. Ele escreveu e desenhou o mangá (review aqui), e para o animê, criou os elementos visuais, desenhou grande parte dos story-boards e dirigiu a série. Depois, repetiu a dose com o longa para cinema, mas nas produções seguintes atuou bem menos, até que a briga por direitos autorais junto ao produtor Yoshinobu Nishizaki o deixasse de fora da franquia.
Quando Sailor Moon (1992) foi aprovada para mangá na revista Nakayoshi e para série de TV pela Toei Animation, a autora Naoko Takeuchi não sabia o que a esperava. Sem controle algum sobre o que ia ser adaptado, viu uma série bastante diferente de sua obra. A personagem Sailor Mars, que fora criada como uma heroína séria e centrada, ganhou uma personalidade explosiva e dada a ataques histéricos no animê. Isso gerou situações muito engraçadas que agradaram o público em geral, mas deixaram a autora descontente. Depois, a fase final Sailor Stars azedou ainda mais sua relação com a Toei.
As heroínas coadjuvantes, as Sailor Stars, eram três guerreiras que vinham para a Terra e se disfarçavam de homens para dificultar sua localização. No animê, eram efetivamente homens biológicos que, ao invocar seus poderes e se transformar, viravam mulheres biológicas. Hoje essa situação cairia como uma luva no discurso progressista identitário, mas não era essa a intenção da autora, que inclusive havia criado essas heroínas para aparecerem pouco, não para dividirem o protagonismo. A situação ficou desconfortável (pra dizer o mínimo) e ela ficou anos longe da Toei, somente retornando quando foi produzida a animação reboot Sailor Moon Crystal (2014), essa sim bem mais fiel ao mangá original.
No grande sucesso Demon Slayer, o estúdio Ufotable entendeu a proposta da obra e seus personagens, aprimorando o design e potencializando a carga emocional da história. Como resultado, a autora do mangá original, Koyoharu Gotoge contou ter chorado de emoção quando assistiu o icônico capítulo 19.
Grandes sucessos, como One Piece ou Naruto, acabam tendo adaptações mais fieis devido ao peso do fandom gigantesco, ao menos perante o público japonês. Quando algo vai ser adaptado pela Netflix, entretanto, os produtores acabam pensando não apenas no público oriental, mas frequentemente em termos de agenda política, algo que ainda não tem muito peso no Japão.
Ser fiel ou não a uma obra é sempre prerrogativa exclusiva do estúdio, e uma vez que o criador tenha autorizado uma adaptação, ele recebe um valor único (independente de bilheteria ou arrecadação) e não pode interferir na adaptação. E por questões éticas, é normal que autores jamais comentem ou critiquem adaptações de suas obras. Também há casos em que o autor se envolve diretamente na adaptação, quando os estúdios entendem que a participação do autor pode potencializar ainda mais a movimentação do fandom e a audiência. Seja como for, a relação entre criadores e estúdios é sempre algo complexo e que muitas vezes pode ser decisiva para o sucesso de uma obra.
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