Mudanças profundas no sistema tributário japonês podem causar um grande estrago entre autores e artistas independentes.
Uma questão que tem sido debatida no Japão, mas é de reduzido conhecimento no ocidente, é o novo conjunto de regras tributárias do governo local. Um novo sistema de faturas e arrecadação de impostos sobre serviços foi implementado no país no dia primeiro de outubro, após meses de infrutíferas tentativas e protestos para fazer o governo recuar. E isso poderá afetar até a produção de animês.
Trata-se do VAT - Value Added Tax (ou Imposto Sobre Valor Agregado), que está sendo aplicado em vários países e chegou ao Japão. A questão é abrangente, mas aqui vamos nos ater ao que vai interferir diretamente na indústria do entretenimento japonês.
Na área da produção cultural, passou a existir uma taxação sobre serviços de profissionais autônomos, ou freelancers. Isso porque o governo avaliou que apenas 15% dos profissionais da indústria de animê (desenhistas, animadores, atores vocais...) são funcionários registrados de estúdios e produtoras. O restante é composto por freelancers, sendo que a maioria sequer tem registro como pessoa jurídica ou empresa.
Sempre foi um mercado meio informal que, no montante geral, movimenta altas quantias de dinheiro, sobre as quais o governo não tinha controle e nem arrecadação. Com a identificação de cada serviço e cada profissional, surgiu a desconfiança de que isso iria expor muitas pessoas, que poderiam sair da área, com medo do assédio dos fãs e stalkers. Vale lembrar que muitos artistas e autores japoneses utilizam pseudônimo e vários jamais tiveram foto e nome verdadeiro revelados.
O acalorado debate sobre anonimato e privacidade apenas gerou perda de tempo, e depois disso os verdadeiros problemas preocuparam ainda mais as pessoas da indústria.
O novo "invoice system" (ou "sistema de fatura"), não irá catalogar pseudônimos e expor cada profissional, mas irá exigir de cada transação financeira entre uma empresa (estúdio, produtora, etc...) e um prestador de serviços (seja desenhista, dublador, roteirista) uma prestação de contas devidamente tributada. É uma mudança e tanto, que assustou muita gente.
Na prática, cada freelancer que estava acostumado a receber seu pagamento integral, agora terá que emitir uma nota fiscal e verá o governo ficar com 10% de tudo o que receber. É assim, em maior ou menor grau, em todo o mundo, e essa realidade chegou à indústria do animê, até então acostumada a uma certa informalidade quando não há pagamento de royalties. O mesmo valia para diversas editoras e agências.
Para ter um benefício de dedução de impostos, as empresas contratantes passarão a exigir cada vez mais que seus profissionais emitam notas ou documentos fiscais de acordo com o sistema de tributação vigente.
Com essa perda direta de rendimentos, estima-se que mais de 25% dos atores vocais e dubladores acabem deixando a profissão em busca de outras atividades. Isso irá criar uma lacuna que poderá eliminar toda e qualquer restrição ao uso de vozes geradas por Inteligência Artificial, decretando, a médio ou curto prazo, a extinção do ofício de ator vocal, sempre tão valorizado no Japão.
Diversos profissionais de criação e arte se mobilizaram durante meses, lançaram a campanha "Stop! Invoice" e arrecadaram mais de meio milhão de assinaturas, o que não comoveu a equipe do Primeiro Ministro Fumio Kishida. Diferente do falecido Shinzo Abe (1954~2022), que dava grande importância à cultura pop e o soft power que ela cria, o atual chefe de governo parece estar apenas preocupado com o aumento na arrecadação.
O novo sistema é muito recente e as empresas japonesas tradicionalmente têm uma certa lentidão em assimilar mudanças.
Uma coisa que pode acontecer é o afastamento de muitos profissionais do mercado, e com isso muitos estúdios menores poderão fechar as portas. Também na área do desenho poderá haver uma flexibilização no uso da Inteligência Artificial, tão combatida recentemente no Japão. Isso não é mera especulação, pois irá parecer um caminho natural de "salvação da indústria" caso a situação se complique com a redução no número de prestadores de serviços.
Os estúdios japoneses já são conhecidos por não respeitarem leis trabalhistas, não pagarem horas extras conforme acordado com seus colaboradores e por sobrecarregarem os profissionais com prazos e volumes de trabalho insanos. Quase todos os estúdios possuem problemas com fiscalização tributária, alguns sofrem processos trabalhistas e as novas regras tendem a ser abraçadas principalmente pelos grandes estúdios, interessados em abatimento de impostos.
Ainda é cedo para mensurar o real estrago que o novo sistema trará à indústria de entretenimento, mas é certo que os efeitos imediatos não são benéficos para os profissionais da área. É importante apontar que o aumento na taxação ganhou urgência para o governo japonês porque o país tem enfrentado os efeitos da inflação, decorrente de uma moeda desvalorizada.
Essa inflação, mais o iminente colapso causado pela grande (e aparentemente irreversível) queda de natalidade, está criando o que pode ser um cenário econômico catastrófico. E tudo isso sem levar em conta o risco (ora remoto, ora possível) de um conflito armado na região, caso a China resolva invadir Taiwan.
Assim, não será surpresa se a indústria do animê, do mangá e da cultura pop japonesa em geral, começarem um gradual declínio, a despeito de tantos sucessos atualmente em produção. Mudanças estão em curso, e não parecem ser para melhor.
SAIBA MAIS:
- Japan: New Mandatory VAT Invoice System (em inglês) - Artigo: Inteligência Artificial e o Futuro da Cultura Pop - Vídeo: "Japan Just Killed Anime" (ative as legendas e tradução, caso precise)
(Agradecimentos ao ouvinte da Shock Wave Radio, o Cosme S)
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