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Ale Nagado

Inteligência Artificial, o fim dos dubladores e o declínio da arte como profissão.

O crepúsculo de uma profissão artística outrora celebrada é apenas a ponta de um iceberg.

Em um mundo sem valores éticos, a I.A. avança sobre a humanidade.

Dublador é uma profissão, dentre outras, que pode estar com os dias contados. Tudo por causa do avanço da Inteligência Artificial, pois está em fase de testes uma aplicação que transforma a voz do ator original de um filme para falar em qualquer idioma, inclusive com sincronia labial alterada via CGI combinado com IA. É algo que promete, em pouquíssimo tempo, eliminar totalmente a necessidade de dubladores e locutores, decretando de forma rápida o fim de uma arte que tem grandes profissionais no Brasil. Vários deles, inclusive, assinaram recentemente uma carta aberta e uma petição em defesa da profissão da dublagem.


Nas últimas semanas, uma fala do famoso dublador Guilherme Briggs viralizou, na qual ele alerta para o risco do fim da profissão artística de várias categorias. E pede por regulamentação (leia-se "interferência do Governo") no uso da I.A., o que provocou debates acalorados, com muitos ditos conservadores, liberais ou liberais-conservadores (um equívoco ideológico), que apontam que qualquer regulação significaria pedir por mais interferência do Estado contra o livre mercado.


A questão é bastante abrangente e complexa, e vamos nos ater aos pontos principais. Em minha concepção ideal de Estado, este deve interferir o mínimo possível nas relações comerciais e na vida das pessoas. Mas o Estado sempre interfere, via cobranças de impostos ou leis de proteção ao mercado local. Todo país, por mais economicamente liberal que seja, interfere nos mercados internos. É uma realidade constatada, e não estou aqui defendendo libertarianismo, anarcocapitalismo ou anarquia, por achar que esses sistemas, na prática, são utópicos e não funcionam. Mas voltemos à questão recente dos dubladores, muitos dos quais acham que em poucos anos poderão ficar sem emprego. Na verdade, falar em alguns anos de sobrevida dessa carreira é algo bem otimista.


As questões mais técnicas sobre expressões idiomáticas locais, gírias, expressividade e regionalismos, podem ser resolvidas dentro de um certo prazo, pois a I.A. tem como característica aprender e evoluir para onde for direcionada. Então, dizer que uma conversão de idioma falado seria uma "dublagem artificial" e de má qualidade não cola, pois é questão apenas de tempo até aparecerem modelos perfeitos para filmes ou animações. O problema, obviamente, é de sobrevivência profissional.


Nenhum trabalhador gosta de ideia de perder seu ganha-pão, e desculpe por ter que lembrar algo tão óbvio. Os empresários estão pouco se lixando para isso, pois o empreendedor é orientado sempre pelo aspecto financeiro. Porém, falar apenas em leis de mercado, apenas em lei da oferta e demanda, significa também dar espaço para discutir sobre venda de bebês, barrigas de aluguel, liberação de drogas ou mesmo escravidão. Isso para ficar em valores que seriam inegociáveis para muita gente.


Aos que se pautam somente pelo livre mercado e acham que Briggs agiu como lacrador de internet ou um socialista pedindo por mais Estado, gostaria de mencionar como as coisas estão indo no Japão, uma referência em cultura pop.

Desde 2022, têm acontecido intensos debates no Japão sobre o uso de I.A. em diversos campos da arte; como o mangá, o animê, a música e os games. O público japonês tem demonstrado apoio a seus artistas, pois todos se posicionam contra a Inteligência Artificial na substituição de profissionais. Isso não tem impedido o anúncio de novas aplicações e tecnologias, mas as próprias empresas de entretenimento estão sendo cautelosas com o assunto.


Um experimento recente foi feito no Japão, com uma I.A. recriando a voz de um ator falecido para um audiobook, levantando assim um debate sobre direitos de voz e imagem à luz de uma ética profissional. E sim, grupos de atores vocais e desenhistas japoneses já encaminharam apelos ao Governo e ao Parlamento para regulamentar e limitar o uso de I.A. nos campos de trabalho de arte e criação. Isso no Japão, um país considerado modelo de liberdade artística e de livre mercado.


A questão no Japão é ainda mais abrangente, pois entre os seiyuu, ou atores vocais mais famosos, a dublagem de obras estrangeiras é um trabalho menos requisitado do que a criação de vozes originais, devido à enorme produção da indústria local do animê.


E os artistas japoneses estão pedindo por regulamentação para defender seus interesses, o que é algo legítimo quando se fala em sobrevivência, sem depender do Estado para lhe dar esmolas. Não é apenas questão de avanço tecnológico e leis de mercado. Estamos falando de vida, de seres humanos e de carreiras pelas quais se lutou muito, coisas aparentemente irrelevantes para os seguidores do deus-mercado, do deus-ciência ou do deus-dinheiro do capitalismo puro e sem freios morais.


Já vi gente que trabalha com arte profissionalmente debochando do "choro" dos dubladores. Certamente, esses que riem irão mudar de ideia quando se virem sem trabalho por causa de I.A., cujo avanço não está ameaçando somente artistas.


No Brasil, já se discute amplamente o uso de I.A. programada para resolver questões jurídicas menores, reduzindo várias frentes de trabalho. E que ninguém pense que isso irá fazer prevalecer um "julgamento puramente técnico", pois o Direito não é uma ciência exata e toda inteligência artificial é tão "precisa", "justa" ou "equilibrada" de acordo com a forma como foi programada e os dados que foram permitidos em seu sistema. Acreditar que isso não terá interferência ideológica de superiores hierárquicos em um trabalho é mostrar que, realmente, décadas de adestramento midiático e deterioração do sistema de ensino cumpriram sua função.


Isso caminha para remodelar todo o mercado de trabalho e as relações sociais, na medida em que tornará obsoletos milhões de cidadãos outrora produtivos. Vale a pena esse tipo de progresso? A quem serve um progresso que conduz incontáveis vidas a um abismo? Depende de qual seu conjunto de valores.

O Japão tem uma classe artística badalada de atores vocais, que não pretendem desistir da carreira pela qual tanto lutaram.

Uma outra discussão relacionada envolve tradutores que inserem sua visão de mundo e adulteram obras, conforme já abordado no artigo "Tradutores Militantes". A solução para isso passou a ser vista na adoção de I.A. para fazer traduções precisas. Com essa opção, o povo "anti-lacração" comemora, esquecendo que não apenas os tradutores "woke" ou "lacradores" vão se dar mal, mas também aqueles profissionais corretos que sempre trabalharam honestamente. O povo fica nessa briga estúpida de direita vs esquerda ou conservadores vs progressistas (ou ainda, nerdolas vs wokes ou lacradores) e não enxerga coisas maiores que estão em jogo. A polarização dessensibiliza e cega as pessoas, que se satisfazem em ver o outro lado se dando mal.


Toda essa crise deflagrada pelo avanço sem escrúpulos da I.A. escancara um problema maior, que é a perda de valores éticos em um mundo governado friamente pelo Liberalismo. E não estamos aqui falando apenas de valores humanos, ou de Humanismo, nada disso. Falo da perda do valor transcendental, do valor espiritual.


Aos que comemoram os avanços da I.A. sem questionar valores éticos, convém lembrar que, conforme o exposto aqui, sua profissão ou de alguém da sua família também pode desaparecer em pouco tempo. Quando a Revolução Francesa e o Iluminismo "tiraram" Deus e colocaram o Homem no centro do Universo e como medida de todas as coisas, prepararam o caminho para o que presenciamos hoje. Ter o Homem como centro da existência o prendeu na imanência, ou seja, no que é material, sem aspirar a algo superior e transcendental.


Sem um vislumbre do sagrado, e apegado somente à matéria, que pode ser medida e precificada, passa-se a considerar como algo lógico e inescapável o avanço que temos visto, com a tecnologia e o lucro atropelando o ser humano, com muitos acreditando que é assim que tem que ser e é tudo sempre para o bem da humanidade. As pessoas aceitaram o adestramento em todos os níveis de suas vidas e acreditam que isso é bom senso e modernidade, acusando as pessoas contrárias de serem "reacionárias" ou "retrógradas".


Para quem ainda não entendeu, não estamos falando de "mais uma ferramenta" ou sobre "eliminar trabalhos perigosos ou enfadonhos". Estamos falando de arte, de substituir pessoas talentosas e que desenvolveram um dom para usar em seu sustento; por máquinas que simulam emoções e habilidades, o que é apenas mais um passo para tornar obsoleta e descartável uma parte considerável da humanidade. O valor da arte como ofício, afinal, não tem importância para muita gente.


Isso não deveria ser visto como inevitável, e nem deveria ser comemorado.


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O vídeo com Guilherme Briggs citado no artigo:



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