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Ale Nagado

Ishiro Honda - De Kurosawa a Godzilla

Uma breve biografia do cineasta que transformou o cinema japonês e ajudou a criar e estabelecer o tokusatsu como entretenimento popular.

O diretor Ishiro Honda, um ícone do cinema japonês.

O primeiro filme do monstro Godzilla (originalmente, Gojira), lançado em 1954, inaugurou oficialmente um gênero de entretenimento fundamental dentro da chamada cultura pop japonesa. O tokusatsu - termo que designa os efeitos especiais no Japão - começou no cinema e logo invadiu a TV. Está em constante transformação e é um veículo para histórias que dependem de efeitos especiais para serem contadas. Parte do sucesso deveu-se ao trabalho do diretor Ishiro Honda, que ao lado do produtor Tomoyuki Tanaka (1910~1997), do diretor de efeitos especiais Eiji Tsuburaya (1901~1970) e do compositor Akira Ifukube (1914~2006), fez História com vários filmes, especialmente a chegada do "Rei dos Monstros".

Cineasta altamente capacitado, Ishiro Honda soube dar o tom certo de terror e aventura para a primeira produção de Godzilla, visto como uma força da natureza. Ao criar imagens épicas e icônicas de destruição massiva, ajudou a definir todo um gênero. Além da direção, Honda também assinou o roteiro do filme, escrito em parceria com Takeo Murata (1908~1994), sob a supervisão do produtor Tomoyuki Tanaka. O projeto foi inspirado no filme americano O Monstro do Mar ("The Beast From 20,000 Fathoms", de 1953), mas seguiu um caminho próprio, alcançando muito mais sucesso e sedimentando a carreira de seu diretor, um profissional em ascensão na época.


Ishiro (ou "Ishirôu") Honda nasceu em 7 de maio de 1911 em Yamagata, no Japão. Filho e neto de sacerdotes budistas, Honda formou-se na Faculdade de Arte Nichidai em 1933. Um ano antes, ele já estava trabalhando como ajudante geral na recém-criada empresa cinematográfica PCL (Photo Chemical Laboratory), que mais tarde se tornaria a poderosa Toho Films.


Em 1934, começou a trabalhar como assistente de direção. almejando uma cobiçada cadeira de diretor. Entre 1937 e 38, foi ajudante de Akira Kurosawa (1910~1998), que logo se tornaria um grande amigo e também mentor.


Convocado pelo exército, Honda foi enviado para lutar na Segunda Guerra Mundial e até trabalhou gerenciando um dos polêmicos bordéis mantidos pelo exército japonês, que usava mulheres de povos capturados como "mulheres de conforto" para os soldados. A experiência e as tristes histórias que presenciou foram relatadas anos depois em um livro sobre o tema.


Após a derrota do Japão, retomou seu sonho de fazer cinema, trabalhando duro na Toho. Em 1949, estreou finalmente como diretor, com um documentário de média metragem (20 min.) sobre a região japonesa de Ise-Shima, o qual foi muito bem recebido. E seu primeiro filme propriamente dito foi o drama Aoi Shinju (ou "The Blue Pearl"), lançado em 1951. Assinando roteiro e direção, começou a construir uma sólida carreira no estúdio. Aos poucos, conquistou a confiança do produtor Tomoyuki Tanaka, da Toho, que lhe entregou a missão de cumprir um ambicioso projeto.

O Godzilla original, de 1954.

Com Gojira, em 1954, fez um trabalho grandioso, no mesmo ano em que seu amigo Akira Kurosawa (1910~1998) lançou Os Sete Samurais. Foi um tempo de grande inspiração e criatividade para a Toho e o cinema japonês. Mas, nem tudo era glória naquele tempo, muito pelo contrário.


Quando lançado originalmente, Gojira recebeu várias críticas negativas em seu país, a despeito do êxito comercial. Algumas delas apontavam o absurdo da situação de um monstro gigante, outras apontavam a exploração sensacionalista da tragédia nuclear que o país havia enfrentado na guerra. Mas o público em geral gostou do filme, que fez sucesso e ganhou sequência já no ano seguinte, com Gojira no Gyakushuu (ou"Contra-Ataque de Godzilla", de 1955), dirigido por Motoyoshi Oda.


Quando o filme foi adaptado pelo diretor Terry Moore e lançado nos EUA como Godzilla - King of Monsters em 1956, as coisas começaram a mudar. A crítica americana adorou o filme e isso foi influenciando a imprensa japonesa, que passou a ver o filme de uma forma diferente. Tendo recebido cenas adicionais de elenco americano em sua adaptação (antecipando em décadas o que seria feito em Power Rangers), não é exagero dizer que foi a receptividade nos EUA que fez Godzilla não só ganhar o mundo, como também o levou a ser mais valorizado em seu próprio país.


E no ano do sucesso redentor de crítica alcançado por Godzilla, Honda dirigiu o filme Sora no Dai Kaiju Radon ("Grande Monstro do Céu Radon", de 1956) com o colosso voador Radon (Rodan, no ocidente), outro clássico em parceria com Eiji Tsuburaya, Tomoyuki Tanaka e Akira Ifukube.


Com vistas ao mercado internacional, vieram outros filmes de monstros, tanto pela Toho como por outros estúdios. O público japonês estava adorando e a crítica finalmente estava dando o braço a torcer. Nos anos seguintes, o primeiro filme de Godzilla seria apontado como um dos mais importantes filmes já feitos no Japão. E o prestígio de Honda crescia cada vez mais.

The Human Vapor: Filme de mistério policial com a direção segura de Honda.

Uma curiosidade da época é que uma leitura equivocada de seu nome nos créditos americanos de Godzilla fez o diretor ser conhecido como Inoshiro Honda por décadas no ocidente. Até hoje, há quem se refira a ele dessa maneira, mas o correto sempre foi Ishiro, ou ainda Ishirou (para aqueles que evitam adaptações na pronúncia).


Gasu ningen ichi gou (literalmente, "Homem Gás Número 1"), conhecido no ocidente como The Human Vapor (1961), assombrou o público com sua história de suspense policial sobre um homem capaz de se transformar em névoa. No ano seguinte, Honda mostraria versatilidade com o violento drama O Homem de Vermelho (Kurenai no Otoko) e com o surgimento de Mothra, outro dos grandes monstros da Toho.


Em 1962, veio King Kong vs Godzilla, a batalha dos dois mais famosos monstros gigantes do cinema, que ganhou uma imponente nova versão americana em 2021, com Godzilla vs Kong. Essa primeira película com os poderosos titãs em confronto aconteceu em numa época em que os filmes estavam sendo mais direcionados para crianças. A violência passou a ser mais estilizada e cenas noturnas e sombrias deram lugar a planos gerais bem iluminados, que evidenciavam demais a artificialidade dos trajes e maquetes.


A direção havia ficado um tanto burocrática e as batalhas dos monstros apenas evidenciavam dois atores fantasiados, sem muito impacto. O diretor voltaria a King Kong em A Fuga de King Kong ("King Kong no Gyakushuu"), em 1967, um filme mais inspirado no qual o gorilão enfrenta sua cópia robótica, o Mekanikong. E apesar de ter dirigido vários dramas, seu forte sempre foram os filmes de ficção científica e aventura, vários deles com monstros gigantes.

Godzilla enfrenta King Kong. Um dos primeiros crossovers da história do cinema.

Em 1969, Latitude Zero ("Ido zero daisakusen"), co-produção entre a Toho e a Don Sharp Productions, da Austrália. Com Tomoyuki Tanaka novamente como produtor executivo, Akira Ifukube na trilha sonora e Eiji Tsuburaya nos efeitos especiais, foi um filme de grande prestígio internacional. No elenco recheado de astros, Akira Takarada (do primeiro Godzilla), Joseph Cotten (de Cidadão Kane, clássico de 1941), Cesar Romero (o Coringa da série do Batman de 1966) e Masumi Okada (de Os Vingadores do Espaço). E vale lembrar que vários dos filmes de Honda foram exibidos no Brasil, especialmente na TV Record, nas décadas de 1970 e 80, fora o pequeno circuito de cinemas da colônia japonesa no bairro da Liberdade em São Paulo (capital), sendo o mais famoso deles o Cine Niterói.


Grande amigo e parceiro de Honda no tokusatsu, Eiji Tsuburaya faleceu em 1970, deixando o estúdio Tsuburaya Pro sob os cuidados de seu filho e também diretor, Hajime Tsuburaya (1931~1973).


Na primeira série Ultra feita após a morte de Eiji, O Regresso de Ultraman ("Kaettekita Ultraman", de 1971), Honda providenciou uma ajuda valiosa, dirigindo cinco episódios (1,2, 7, 9 e 51) e trazendo seu prestígio à produção.

O Regresso de Ultraman, série Ultra com a marca de Ishiro Honda.

Em uma entrevista, o ator Jiro Dan (Hideki Goh/ Ultraman Jack) recordou como foi trabalhar com o renomado cineasta. Antes, vale uma explicação técnica. Na época da produção, os filmes tinham que passar por um processo de "dublagem", no qual os atores gravavam suas falas em estúdio, para serem mixadas sobre as filmagens.


A captação de áudio não era boa na época, ainda mais para cenas externas. Mas Honda era perfeccionista e, para conseguir maior naturalidade nas falas e um som mais "real", fez questão de fazer toda a captação de áudio em tempo real durante as filmagens, o que foi muito mais trabalhoso para todos.


No último episódio, na icônica cena de despedida de Hideki Goh, novamente a mão do diretor fez a diferença. Correndo pela praia enquanto vê Ultraman voando para os céus, o garoto Jiro Sakata declama os "Cinco Juramentos de Ultra". É uma cena altamente emocional, com a câmera correndo ao lado do garoto, fazendo o espectador se sentir junto com o personagem.

Hideki Goh (Ultraman Jack) enfrenta seu destino no último episódio de O Regresso de Ultraman, exibido em 1972.

Ainda em 1971, Honda dirigiu os dois primeiros episódios de Mirrorman, clássico da Tsuburaya com a TV Fuji. Em 72, foram 4 episódios para Kinkyu Shirei 10-4 10-10 ("Comando de Emergência 10-4 10-10", da Tsuburaya e NET) e 6 episódios de Thunder Mask, criação de Osamu Tezuka para a Hiromi Production, SOTSU e Nippon TV. Em 1973, dirigiu 8 episódios de Ryuusei Ningen Zone, série de super-heróis da Toho. Depois dessa passagem pelo tokusatsu para TV, retornaria ao cinema, onde tinha mais liberdade com prazos de produção e melhores orçamentos.


Em 1974, dirigiu seu último filme, Terror de Mechagodzilla, lançado no ano seguinte. Dali em diante, concederia muitas entrevistas e escreveria memórias e artigos sobre seus tempos de glória, mas deixaria a direção para sempre.


Mas, mesmo afastado da cadeira de diretor, não estava exatamente aposentado. Sua amizade com Akira Kurosawa o levou a trabalhar como assistente ou diretor auxiliar dele em diversos filmes, como Kagemusha (1980), Ran (1985), e Rapsódia em Agosto (1991). Geralmente, fazia o trabalho de diretor de segunda unidade, acompanhando filmagens de cenas menos importantes nos filmes.


Em Sonhos de Akira Kurosawa (1990), coordenou as complexas tomadas de cena com multidões fugindo de um desastre, no segmento "Monte Fuji em Vermelho", o que muitos associaram à sua experiência com Godzilla.


Vendo de fora, pode parecer que o velho mestre rebaixou-se ao trabalhar novamente como assistente, ainda que fosse para um gênio de renome mundial como Kurosawa. Porém, eles eram muito amigos e, segundo relatos de um ex-assessor de Kurosawa, Yasuki Hamano, eles eram velhos amigos e se tratavam como iguais, conversando e trocando ideias nos bastidores.

Junto com Akira Kurosawa (à esq.): Longa colaboração entre dois mestres do cinema.

Talvez Honda estivesse cansado, talvez achasse que já tinha esgotado o que tinha vontade de fazer com tokusatsu, ou apenas desejasse um ofício com menos pressões comerciais e mais prazer em sua velhice. O fato é que ele optou por esse trabalho de diretor de segunda unidade ou diretor assistente e foi um fiel escudeiro de Kurosawa em seu final de carreira e vida.


Em 1993, Kurosawa e Honda fariam sua última parceria, com Maadadayo, drama com toques de humor sobre a velhice e a morte, lançado no fatídico ano seguinte. Nesse filme, o último dos dois velhos amigos, Honda também foi coautor do roteiro, apesar disso não ter sido noticiado na época.


Ishiro Honda faleceu em 28 de fevereiro de 1993, aos 81 anos, vítima de problemas respiratórios, deixando esposa e dois filhos. Kurosawa aposentou-se logo depois desse filme e faleceu em 1998, aos 88 anos. Até hoje suas memórias são reverenciadas e seus nomes foram gravados para sempre na História do cinema japonês


Ao lado de Eiji Tsuburaya e Tomoyuki Tanaka, o diretor Ishiro Honda ajudou a formatar toda uma indústria de entretenimento, sendo reconhecido em vários países como diretor cult. Nos bastidores, colaborou com o cineasta japonês mais famoso no ocidente e realizou expressivos trabalhos na TV, incluindo na famosa franquia Ultra.


Além de diretor e roteirista, foi também escritor e palestrante. E, a despeito de possuir um trabalho bastante diversificado, sempre teve orgulho de sua participação na criação e consolidação do tokusatsu como uma forma de entretenimento tipicamente japonesa. Nos filmes ou na vida real, foi um gigante entre gigantes.

::: VÍDEOS SELECIONADOS :::

1) Trailer do primeiro filme de Godzilla. Concebido como um misto de filme de terror e cinema-catástrofe, também dava relevância ao drama humano. Um clássico eterno.

2) Trailer de The Human Vapor (1960), outra obra emblemática de Ishiro Honda.

3) Trailer de King Kong vs Godzilla:

4) Trailer internacional de Latitude Zero (1969), considerado um blockbuster da época.

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- Katsushi Murakami (designer)

- Kazuo Koike (roteirista, professor)

- Shotaro Ishinomori (autor de mangá) - Shozo Uehara (roteirista)

- Tetsuo Kinjô (roteirista)


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