Recente trailer da série levanta discussões sobre a intensidade do teor político da obra.
No último dia 29 de agosto, a Toei Company lançou um novo teaser trailer para a vindoura série Kamen Rider BLACK SUN, que trará uma nova interpretação para o clássico Kamen Rider BLACK (1987) e seu universo de personagens.
O vídeo escancara algo que havia sido insinuado no teaser anterior. Nesse mundo da nova série, monstros humanos - chamados de kaijin - tentam trabalhar e viver normalmente em sociedade. Alguns são extremamente perigosos e outros somente querem viver em paz.
Nobuhiko Akizuki, o Shadowmoon, aparece discursando em um protesto kaijin, incitando uma revolta contra os humanos para que seu povo possa conquistar o direito de viver em paz. Aparece um protesto saindo do controle, com policiais tentando conter os kaijin, mas eles são muito fortes. Até que um policial, apavorado, atira nas costas de um dos manifestantes.
O cenário apresentado pelos trailers é o de uma sociedade em convulsão, com medo, ódio e preconceito se espalhando. Há uma polarização, com um lado clamando por direitos civis e uma vida pacífica para os kaijin, e o outro lado querendo que sejam caçados, expulsos do país ou exterminados. É feita alusão a um incidente envolvendo um kaijin no passado.
Por tudo o que já foi apresentado, é realmente uma obra de forte conotação política, pois é fácil relacionar a situação dos kaijin como sendo uma metáfora para as recentes crises migratórias de refugiados de países em guerra ou com extrema pobreza, que têm invadido especialmente a Europa aos milhares em tempos recentes.
Realmente, não há dúvida alguma de que BLACK SUN virá com boa dose de política, com a questão dos kaijin como um paralelo para a questão dos direitos civis de imigrantes, bem como a xenofobia e o preconceito racial. E ninguém em sã consciência e com algum espírito altruísta há de negar a importância humanitária de tais questões. O problema que alguns imaginam é aquela palavrinha que tanto tem incomodado fãs de quadrinhos e filmes americanos nos últimos tempos: Lacração!
Mas afinal, com tanto subtexto político, será que Kamen Rider BLACK SUN poderá ser uma obra lacradora?
O QUE É LACRAÇÃO (E O QUE NÃO É)
Uma coisa muito importante nestes tempos de polarização cheia de ódio, provocações e cinismo, é tentar entender e classificar o que é, afinal, a tal da "lacração".
Termo típico do espírito do nosso tempo, lacração é como se convencionou chamar um discurso político panfletário em qualquer obra de entretenimento, seja um gibi, seriado, livro, filme, game ou desenho animado. Geralmente é algum tema ligado ao identitarismo, especialmente racismo, feminismo ou pautas LGBTQI. Um discurso panfletário é sempre um discurso raso, sem nuances, que trata o outro lado com maniqueísmo e arroga ser o detentor único das virtudes existentes. Como um enredo onde todo homem é bobo, fraco ou canalha, com as mulheres concentrando todas as virtudes possíveis.
Entre militantes progressistas ou pessoas declaradamente de esquerda, tem ficado bastante comum atribuir um pensamento estúpido a quem é "anti-lacração", geralmente identificado como "conservador" (outro rótulo muito mal compreendido, e cheio de problemas). Como exemplo, muitos esquerdistas costumam dizer que "conservador não pode ver mulher com protagonismo que já reclama de lacração", o que é um erro gigante.
Geralmente quem é anti-lacração é um povo mais velho, que viu Aliens 2 - O Resgate nos nos 80 e vibrou com a heroína Ripley conseguindo vencer os monstros assassinos, ou que viu Sarah Connor com músculos e armas lutando pra proteger o filho em O Exterminador do Futuro 2 nos anos 90. Ou que viu a Mulher Maravilha de Lynda Carter, Poderosa Ísis ou A Mulher Biônica, todas mulheres imbatíveis nos anos 70. Nenhum nerd/otaku/geek que se preze reclama de mulheres fortes (fisicamente e de caráter), mas não tem mais paciência com militantes feministas, vitimistas e misândricas.
Entre fãs de animê, todos sabem que Hayao Miyazaki sempre criou filmes com mulheres fortes e independentes, como Nausicaä e Mononoke. No entanto, ele (que se declara de esquerda) nunca encampou discurso feminista ou trouxe misandria a suas criações, pois ele sabe a diferença entre passar uma mensagem e fazer um panfleto. E nenhum fã de quadrinhos se incomodou em ver a She-Hulk ganhando sua própria série, mas se irritaram em ver o Hulk original desprovido de testosterona como coadjuvante nessa mesma produção. O preconceito de quem acha que os caras que reclamam de lacração são misóginos, racistas, xenófobos, homofóbicos e fascistas é algo digno de nota.
Muitas vezes, a lacração não está na obra, mas no discurso do militante que a interpreta de forma enviesada e exagera no discurso político (a favor ou contra).
KAMEN RIDER, POLÍTICA E MILITÂNCIA
Um outro argumento que frequentemente surge entre militantes de esquerda é apontar que "tudo é política" e dizer que tudo (ou quase) sempre é sobre política.
É correto dizer que toda obra, conscientemente ou não, carrega as visões de mundo (políticas, religiosas, etc...) de seus autores. No entanto, fazer uma defesa de crença é diferente de apologia e proselitismo; e tudo isso é diferente de lacração. Daí, esse discurso de que "tudo é política" é apenas o militante buscando viés de confirmação para validar seu discurso. Mas voltando ao Kamen Rider, será que a política é tão importante desde o início da franquia?
O Kamen Rider original (de 1971), que lançou as bases dessa franquia, trazia um herói lutando pela liberdade da humanidade (algo que era dito na locução de abertura), o que pode-se entender por luta contra o totalitarismo, que é um conceito politico. E ele também lutava contra seu destino de ser um agente do mal, levantando-se contra seus criadores.
A série de TV coordenada pelo produtor Toru Hirayama (1929~2013) mostrava a organização Shocker sendo fundada por antigos nazistas, mostrando-os como seres malignos que buscavam conquistar o mundo com seus monstros e soldados. Porém, esse embate contra um grupo neonazista era algo mais alegórico, tipo "bem contra o mal", até por ser uma série voltada a crianças. Uma visão diferente e mais elaborada foi vista no mangá, feito de forma simultânea.
No clássico mangá de Shotaro Ishinomori (1938~1998), o elemento político é reforçado e ganha complexidade, pois a divisão japonesa da Shocker é o próprio governo japonês, agindo em conjunto com outros governos. O objetivo é estabelecer um governo mundial tirânico onde um computador organizaria a vida em sociedade, tudo a partir de visões frias e científicas. Uma visão totalmente contrária ao livre-arbítrio e às liberdades individuais, algo que pode acontecer tanto em governos de esquerda quanto de direita.
Fazendo uma comparação resumida, o Rider original na TV era tanto sobre política quanto os quadrinhos antigos do Capitão América lutando contra o Caveira Vermelha (uma visão estilizada e sem nuances), enquanto o do mangá se alinhava mais com literatura distópica em sua visão política. E é sempre a força do indivíduo livre contra projetos de controle coletivo e nivelamento da sociedade.
Qualquer semelhança com as discussões sobre a antiga "teoria conspiratória" da Nova Ordem Mundial pode não ser mera coincidência nesse caso. De qualquer forma, o tema é sempre a luta contra uma tirania totalitária que busca controlar a liberdade das pessoas, sem entrar em discussões filosóficas sobre liberdades e visões ideológicas. A série do Kamen Rider BLACK original passava longe de questões políticas, exceto em episódios específicos, com alguma alusão a controle mental pela mídia, experimentos secretos do governo ou ideias conspiratórias. A grande ameaça eram os Gorgom infiltrados na sociedade e almejando escolher o novo Imperador Secular (que pode ter conotação de algo oposto a Deus, ligado ao que é profano e mundano) para liderar seus monstros e dominar a humanidade. BLACK SUN parece que vai avançar o lado mais intelectualizado e subir o tom geral, mostrando um mundo bastante complexo.
Com tudo isso colocado em perspectiva, não há problema algum em BLACK SUN ter um contexto ou pano de fundo político, a menos que isso ganhe ares panfletários e maniqueístas em favor de um lado, o que dificilmente acontecerá. O diretor Kazuya Shiraishi está empenhado em oferecer uma obra onde o bem e o mal são questionados, sem respostas e soluções fáceis. Isso é realmente fazer uma obra adulta, politizada e realista, no sentido de mostrar um mundo com tons de cinza, sem maniqueísmos.
Certamente não faltarão alguns kaijin realmente perigosos e sanguinários, e não resta muita dúvida de que o Kamen Rider irá destruir tais monstros, pois é esperada uma série com muita ação, não somente diálogos e tramas de fundo político e social. E nesta versão, Nobuhiko terá papel importante em sua forma humana, agindo como líder carismático na defesa de seu povo. Provavelmente, situações limítrofes entre a segurança da sociedade e os direitos individuais serão apresentadas, pontuando a série com diversas camadas de entendimento.
Como já foi dito, uma obra politizada não precisa ser uma obra panfletária e lacradora, e tanto o roteirista Izumi Takahashi, quanto o diretor Kazuya Shiraishi, carregam a missão de entregar uma boa obra de entretenimento, que faça pensar sem desrespeitar o legado da série original. O veredito só poderá ser dado após a conclusão da série. Especular demais com uma produção que sequer estreou, é algo precipitado, para dizer o mínimo. A política pode permear uma obra de maneira inteligente, e esse é o grande desafio de criadores empenhados em fazer boa arte.
Kamen Rider BLACK SUN tem estreia mundial pela plataforma Prime Video, da Amazon, em 28 de outubro de 2022.
Trailer 2:
Para saber mais:
Leia também: - Kamen Rider BLACK - A série clássica
- Kamen Rider BLACK RX - Kamen Rider - O mangá original - A essência de Ultraman, Kamen Rider e Super Sentai
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