Reflexões sobre memórias afetivas e qualidades intrínsecas de uma obra.
Lá pelos anos 1970, 80, desenhos e séries eram coisas pouco levadas a sério na imprensa. Claro, filmes da Disney atraem as atenções de jornalistas há quase um século, e fenômenos como Star Wars (o primeiro é de 1977) sempre são exaustivamente cobertos pela mídia, graças à sua repercussão na sociedade. Mas desenhos animados e séries infantis, bem como gibis, nunca mereceram muita cobertura de veículos de comunicação. Eram "coisas de criança", sem o menor vestígio de algo que pudesse interessar a um adulto.
Hoje, tudo é diferente. Pela internet, dezenas e dezenas de canais trazem pessoas, em geral na faixa dos 30 anos, comentando os lançamentos e as polêmicas envolvendo filmes de super-heróis, seriados, quadrinhos e desenhos animados (especialmente o animê). Entre um extremo e outro, o que mudou nestes anos todos? Para entender isso, é preciso voltar bastante no tempo, mais precisamente à década de 1980, antes de surgir a imprensa especializada em cultura nerd, que passou por diferentes fases até chegar no momento atual, dominado por canais no YouTube, com profissionais, amadores com conhecimento e simples fãs produzindo conteúdo para divulgar e comentar produções variadas.
O advento das graphic novels de super-heróis, como Batman - O Cavaleiro das Trevas e a minissérie de luxo Watchmen, abriram as portas do mercado de quadrinhos para publicações mais maduras, e houve uma explosão de vendas. Quadrinhos passaram a ser vistos como arte em vários países e também no Brasil, que experimentou uma explosão de títulos, com uma variedade incomparável nas bancas de jornais e revistas.
Vários jornalistas da grande imprensa escrita abraçaram isso, pois já eram leitores de quadrinhos e viram a oportunidade de escrever sobre o que gostavam. Lá pelo final dos anos 80, praticamente todos os grandes jornais brasileiros tinham um dia da semana de seus cadernos culturais dando espaço a matérias sobre quadrinhos. E quando aparecia algum filme ligado à HQ, o hype aumentava. Quem era leitor de quadrinhos na época tem boas lembranças. Era o início da imprensa "nerd", ainda com um verniz intelectual e sofisticado, pois se apoiava fortemente nos quadrinhos adultos.
Então vieram as séries tokusatsu, numa época em que as mais "recentes" a serem vistas no Brasil foram Spectreman e O Regresso de Ultraman, ambas de 1971. Foram grandes sucessos no Brasil, sendo conhecidos por todas as crianças.
Após a explosão de Jaspion e Changeman (ambas de 1985) no Brasil do final dos anos 80, há quem diga que o tokusatsu como o conhecemos hoje nasceu com essas duas séries. National Kid, Ultraman, Vingadores do Espaço, nenhum super-herói de tokusatsu anteriormente visto aqui jamais havia chegado perto da explosão de consumo causada por Jaspion e Changeman. Até porque o licenciamento, antigamente, era quase inexistente quando se falava em personagens japoneses.
As duas séries citadas, que estrearam na extinta TV Manchete em 1988, geraram uma febre sem precedentes, e muitas outras séries similares vieram, com toneladas de produtos licenciados, o que saturou o mercado. A grande profusão de produtos licenciados foi o grande diferencial, detonando uma febre de consumo. A imprensa da época apenas achou tudo muito bizarro e tosco, com alguns fazendo a ressalva de que era bem chamativo e divertido para as crianças, mas sem dar importância.
Hoje, passadas mais de três décadas, os fãs daquele tempo são a "Geração Manchete", com uma parcela que ainda acompanha as novidades da área tokusatsu. Geralmente, esse fã que viveu os anos 80 e 90 costuma dizer que não consegue assistir os antigos seriados da franquia Ultraman (ou até os modernos), por achar as histórias que faziam a alegria das crianças nos anos 70 muito "paradas, chatas". Se acostumou com a pirotecnia e cortes de cena rápidos o tempo todo, sendo incapaz de manter a atenção por alguns minutos de diálogos e tomadas de cena mais calmas para acompanhar um enredo.
É um público que exige adrenalina o tempo todo, gente gritando, explosões e gestos exagerados, com várias lutas ao longo do episódio, mantendo, na vida adulta, a mesma expectativa de quando era criança. Isso chega a ser um problema de gerações, e parece que tudo tende a ser cada vez mais acelerado; seja no cinema de Hollywood, seja nos seriados japoneses, feitos para prender a atenção de gente cada vez mais ansiosa e que precisa de estímulos sensoriais para não perder a atenção na história. Para quem era criança no Brasil do final dos anos 80, certamente Jaspion e Changeman soavam muito inovadores, o que não significa que foi assim na terra de origem dessas produções. São lembrados apenas entre os fãs de nicho.
Superando toda a febre dos heróis da Geração Manchete, o animê foi uma febre ainda maior, graças a uma série que já fora um grande sucesso no Japão e Europa.
Lá pela metade da década de 1990, houve a grande revolução da área "nerd" quando o termo ainda era ofensivo, por conta do cultuado filme americano "A Vingança dos Nerds" (1984).
A chegada dos Cavaleiros do Zodíaco em 1994 inaugurou uma febre por desenhos japoneses, algo que entrou de vez na vida dos brasileiros, como nunca antes havia acontecido. Aquela explosão de cores e luzes, as elegantes armaduras, as batalhas grandiosas; com muito drama e violência num grau até então inimaginável para desenhos animados, conquistou o público brasileiro. A febre de consumo envolvendo CDZ gerou um produto cult, a revista Herói, que falava dos Cavaleiros e de muitas outras coisas dentro do que hoje é conhecido como universo nerd, geek e otaku.
Na Herói, personagens do passado eram recordados e muitos inéditos eram apresentados pela primeira vez ao público brasileiro. E, principalmente, super-heróis; seja de HQ, cinema, tokusatsu, animê ou o que fosse, eram levados a sério e tratados com entusiasmo. Houve uma avalanche de produções sendo lançadas na cola de CDZ, mas nada chegou aos pés do fenômeno de cultura de massa que foi a saga criada por Masami Kurumada.
Não eram poucos os que acreditavam, na época de CDZ, que aquele era "o primeiro anime da História". Aí, quando alguém lembrava que antes já havia Speed Racer, A Princesa e o Cavaleiro e tantos outros, era comum algum esperto dizer: "Ah, aquilo não era bem anime, né?", transformando um estilo visual e narrativo de uma época na própria definição de uma arte muito mais antiga.
As séries de tokusatsu e de animê com maior fandom nostálgico do Brasil traziam toda uma dinâmica visual e narrativa dos anos 80. As histórias eram mais acelerados do que existia nos anos 60 e 70, mas não foram o ponto de partida para coisa alguma, e sim frutos de mídias em constante evolução.
Em termos narrativos, uma coisa que cativou a audiência de CDZ era o formato "novela", com grandes sagas que se desenvolviam em muitos capítulos. Esse formato já era conhecido no Brasil, pois animês de sucesso aqui no passado, como Patrulha Estelar, Heidi, Rei Arthur e outros, já eram assim. Em CDZ, além da ação e do carisma dos personagens, o elemento mitológico e sua evocação à grandiosidade da honra e de lutar pelo que é certo cativou e inspirou milhões de telespectadores. Mas falando sobre a forma narrativa, a estrutura de roteiro já era bastante conhecida no Japão e mesmo no Brasil.
Tanto para a "Geração CDZ" quanto para a "Geração Jaspion", houve o fator ineditismo no mercado brasileiro, pois havia anos que produções japonesas de animê e tokusatsu não chegavam ao Brasil. O público daqui não acompanhou a evolução das produções e via como novidade revolucionária o que não fora recebido tanto assim em seu país de origem. Além disso, houve outro fator decisivo para o sucesso no Brasil, que foi o planejamento de marketing e lançamento de produtos.
A geração que foi criança nos anos 60 e 70 quase não teve produtos ou brinquedos dos heróis japoneses. Pouquíssima coisa licenciada foi lançada no Brasil, pois as séries não eram vistas como veículos potenciais de merchandising. Nos anos 80 e 90, tudo mudou. Fitas de vídeo, bonequinhos, lancheiras, cadernos... Os heróis japoneses pós-Jaspion já eram exibidos com produtos sendo lançados e desenvolvidos. Isso fidelizou os fãs, depois veio a imprensa especializada e o entretenimento passou a ir muito além de assistir determinado programa.
Jaspion e Changeman eram séries que davam continuidade a linhagens maiores. Os esquadrões coloridos de Super Sentai formam uma franquia que surgiu na década de 1970, enquanto o Jaspion seguia o estilo visual dos primeiros Metal Heroes, os Policiais do Espaço, que tiveram início com o Gavan em 1982, e temperou com a fórmula de monstros gigantes que funcionava tão bem com os Ultras. Ambas fizeram sucesso em suas exibições originais no Japão, mas eram apenas as séries do ano de 1985, vistas pelos fãs do gênero. Eram variações de produções anteriores, cheias de méritos, sim, mas muito longe de serem obras muito criativas ou inovadoras, sendo bem padronizadas. Trilhas sonoras cativantes, boa dosagem de humor e drama, lutas acrobáticas eletrizantes e uma linguagem visual de video clip seguravam a audiência, mesmo quando as histórias eram repetições de clichês. A bem da verdade, Jaspion possuía uma variedade muito maior nas histórias, mérito do roteirista Shozo Uehara (1937~2020), um profissional respeitado desde os Ultras clássicos. Mas Changeman também teve vários episódios memoráveis, ainda que em geral a série seguisse uma fórmula mais repetitiva.
Ser a primeira obra de um determinado tipo que você viu não transforma aquilo em uma obra pioneira de fato, e tal visão romantizada acaba atrapalhando uma análise de todos os outros elementos da obra. E isso nos leva a um ponto crucial, que é o embate entre nostalgia e qualidade real.
Memória afetiva é algo único e individual, produto de uma série de fatores emocionais e fica gravada para sempre em cada um. É a memória afetiva que gera a nostalgia, uma saudade idealizada de tempos mais simples ou mais felizes. Isso não está necessariamente ligado a qualidades técnicas ou artísticas de uma série, filme, gibi ou o que for. Esse é o motivo pelo qual muitas pessoas, ao reverem algum desenho ou filme antigo de sua infância, dizem que era melhor ter ficado com a memória, pois descobriu que aquela obra que fazia sua alegria na infância era bem pobre e tosca. Sobre essa quebra de imersão causada por valores de produção insatisfatórios, recomendo o texto "Tokusatsu e a suspensão de descrença" [Link no final do post].
Por outro lado, muitos conseguem reviver a sensação que tinham quando criança, ou então passam a perceber detalhes e qualidades interessantes que não notava na época. Mensagens, frases, abordagens que passam a fazer mais sentido quando se tem maturidade. Séries como Ultra Seven e Spectreman são repletas de casos desse tipo. E muitas obras resistem ao teste do tempo, em termos de roteiro, direção, trilha sonora e tantos outros fatores. Os Ultras clássicos, por exemplo, traziam histórias criativas, com muitas reflexões sobre a condição humana, além de um senso cinematográfico em suas narrativas. Por outro lado, é comum também ouvir de gente da geração anos 80 que os heróis daquela época tinham mais carisma. E muita gente dos anos 70 diz o mesmo sobre sua geração, que teria mais carisma que a dos anos 80 ou 90. Mas afinal, o que define o "carisma"? O conceito é totalmente subjetivo, e você pode achar carismático um ator ruim ou de poucos recursos dramáticos, enquanto pode desprezar algum talento realmente bom apenas porque está inserido em uma produção que visualmente não o atrai.
Quando se vai produzir conteúdo (visual, escrito ou de áudio) sobre qualquer produção, é importante deixar o fator nostalgia um pouco de lado, para ver o contexto histórico em que a obra foi produzida, como ela foi recebida pelo público original, o quanto bebeu de influências de outras obras e o quanto influenciou o que veio depois. Ter alguma coisa em sua memória afetiva nem sempre significa que aquilo tinha qualidade, apenas que capturou sua atenção como público-alvo no momento certo e em um contexto de vida que ficou para trás, muitas vezes idealizado frente às realidades da vida adulta.
Cada época tem suas peculiaridades, pontos fortes e fracos, mas as verdadeiras qualidades (bons valores em um roteiro, boa música, personagens bem interpretados, direção envolvente) não podem ser relativizadas. (Aliás, o relativismo é um mal da modernidade.)
Analisar de forma racional uma obra de entretenimento, obviamente, não é trabalho para um fã apaixonado ou fanboy, e sim para um criador de conteúdo que leve a pesquisa a sério, seja profissional (de fato ou aspirante) ou amador. Mas para qualquer pessoa, a partir do momento em que se vai emitir uma opinião, um juízo de valor sobre uma produção (antiga ou moderna), tenha a certeza de que entende o contexto da época e que está separando, o quanto for possível, a memória afetiva do julgamento crítico. Isso vale para todo tipo de peça de entretenimento ou trabalho artístico, a fim de que o argumento final de uma análise não traga implícita a frase que dá título a este ensaio.
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