O que está por trás do debate sobre o termo abraçado pelo fandom de mangá e animê.
Gostaria de tecer alguns comentários acerca de uma discussão que surgiu recentemente no Japão (e repercutiu aqui) sobre o significado do termo "otaku". Como eu tomei conhecimento da polêmica através do site Anime United, convido a ler a notícia primeiro (caso ainda não tenha visto):
Resumindo, o caso é o seguinte: Muitos japoneses estão debatendo a recente alteração em dicionário local sobre o significado de "otaku". Mas, primeiro, vamos entender o sentido original do termo, que realmente mudou ao longo do tempo e foi abraçado pela comunidade de fãs de mangá e animê.
Em 1983, um articulista japonês chamado Akio Nakamori usou o termo "otaku" em sua coluna, em uma extinta revista de mangá erótico, para designar uma espécie de cidadão cujo comportamento já chamava a atenção da sociedade. Há controvérsias que apontam seu uso anterior, mas é fato que após o texto de Nakamori o assunto ganhou visibilidade.
A palavra otaku originalmente escrita como おたく (ou ainda お宅) significa "casa de outra pessoa" ou "sua casa", mas Nakamori utilizou a grafia neutra em katakaná ~ オタク, para designar aquele que se fecha em si mesmo, como se a pessoa fosse sua própria "casa", como alguém fechado num casulo. Ou seja, o "otaku" na definição de Nakamori, seria alguém sem vida social, mais recluso, que voltava suas energias e atenções para um hobby, de maneira obsessiva. E isso valendo para qualquer tipo de hobby, como colecionar miniaturas de trens, action figures, itens sobre idols, ficção científica, cosplay ou games antigos. Diferente de gostar de algo ou consumir produtos, a atitude do otaku (em seu sentido original) é praticamente devocional a seu objeto de amor, e um substituto para uma vida dita "normal".
O termo, como se pode ver, surgiu com um sentido ainda mais pejorativo do que o termo ocidental "nerd", e não necessariamente é ligado a gostar de ficção científica e quadrinhos. Também não está associado a rendimento escolar, pois enquanto o nerd dos anos 80 e 90 era o cara que tirava boas notas e era esquisito, o otaku muitas vezes era visto como apenas um "esquisito", que ainda por cima pode ir mal na escola. Para o Google Tradutor, no entanto, "otaku" e "nerd" são erroneamente apontados como sinônimos.
Nos anos 90 e início dos anos 2000, com o mangá e o animê se tornando febre em vários países, o termo otaku foi abraçado no ocidente como sendo um sinônimo de fã de mangá e animê, podendo englobar games, dorama, tokusatsu, cosplay ou vertentes musicais japonesas. No Brasil, o uso do termo oscila entre a autoironia e o puro orgulho de pertencimento à comunidade de fãs de animê e cultura pop japonesa. Mas, no Japão, o termo continuou sendo pejorativo; ainda que a última década tenha visto uma significativa melhora na percepção popular, mas não a ponto de transformar o sentido do termo, que aliás tem muitas variantes.
Dois doramas (as novelas locais), inclusive, abordaram o comportamento do otaku e a percepção da sociedade, como Densha Otoko (2005) e Tokusatsu GAGAGA (2019). Em ambos, é jogado um olhar terno sobre o otaku clássico, em oposição à imagem mais caricata e popularizada nos últimos anos na web do "otaku fedido", um ser desajeitado, que não se cuida, é viciado em séries e games muito além do saudável e é avesso a contatos sociais reais.
Em Tokusatsu GAGAGA, a protagonista é uma fã de super-heróis de tokusatsu, ou uma "tokuota" (de "tokusatsu otaku"). A personagem vive com medo de que descubram seu hobby, pois trabalha em um escritório de uma empresa tradicional, cercada de gente "normal" (ou quase isso). Ela é extremamente bonita e tem uma amiga ainda mais deslumbrante, e que é ainda mais otaku.
Essas produções foram bem comentadas na época de sua exibição, melhoraram a visão de algumas pessoas, mas não realizaram grandes mudanças culturais. Existe mesmo um esforço para se mudar essa imagem negativa do otaku no Japão, e isso não tem nada a ver com desprezar alguém por assistir animê. Em qualquer faixa social, pessoas podem citar seus mangás e animês favoritos sem que isso seja visto com estranheza.
Gostar de One Piece por acompanhar desde a infância, ou ir ao cinema ver filmes de Hayao Miyazaki ou Makoto Shinkai nunca fez um cidadão japonês ser visto como otaku em seu país. Já um adulto, fora do nicho de fãs, dizer que acompanha cada nova produção de franquias como Super Sentai ou PreCure (sempre voltadas a crianças), aí já é carimbar "otaku" em sua fronte e ser visto como alguém bizarro por outras pessoas. Não que os mais bem resolvidos se incomodem com o que os outros pensam, mas muitos, especialmente os mais jovens, se preocupam com rótulos que tragam uma conotação negativa.
Conforme bem anotou a matéria no Anime United, a sétima edição do Dicionário Japonês Iwanami, lançada em 2011, ainda definia "otaku" como sendo uma "pessoa que se isola em seu mundo limitado e voltado para o hobby e evita a interação social com os outros". Já a oitava edição, lançada em 2019, registra que "otaku" é "uma pessoa que ama profundamente um campo de hobby específico, possui e coleta conhecimento ou itens relacionados a esse campo e realiza ações além da média”. Ou seja, seria apenas um tipo de especialista apaixonado em algum assunto. A mudança ocorreu já faz algum tempo, mas havia passado batido, e só recentemente passou a ser debatida no fandom.
Muitos estudantes japoneses, que achavam a definição original muito ofensiva, gostaram da nova versão. Outros, criticam que o termo até limita o uso como uma ironia autodepreciativa ou dificulta a definição da pessoa que realmente não tem uma relação saudável com seu hobby. No entanto, isso parece muito mais um problema ligado a "otaku" ser uma palavra gatilho para algumas pessoas, do que algo ligado à percepção popular real. No ocidente, o termo otaku colou fortemente para designar os fãs de cultura pop japonesa, enquanto no Japão, a percepção sempre foi diferente, e não é uma alteração em dicionário que vai modificar isso.
Vale dizer que a linguagem é um instrumento vivo, que sofre modificações conforme o uso popular e evolui através dos tempos. No caso do citado dicionário japonês, parece que é apenas mais um movimento do "politicamente correto", algo imposto de cima para baixo. Ou, melhor dizendo, uma tentativa de impor uma mudança conceitual com base em "proteger sentimentos" de quem possa se sentir ofendido com o sentido depreciativo do termo.
O livro Otaku - Os Filhos do Virtual, do francês Etiénne Barral, deixa muito claro a seus leitores que mudar uma definição não altera o comportamento que é definido pela palavra. O que pode acontecer é a busca por um outro termo para descrever as pessoas realmente antissociais que buscam refúgio em um hobby, trocando família, carreira e vida social por uma devoção quase religiosa ao que deveria ser apenas um entretenimento.
Definir o otaku como se fosse um especialista apaixonado por algo é muito vago e não vai resolver qualquer problema social ou emocional, apenas aparentar a virtude da empatia. No fundo, para os defensores da mudança de significado de palavras para algo mais positivo, tudo é uma questão de sinalização de virtude, uma atitude tão comum quanto vazia nestes nossos tempos.
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