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Ale Nagado

Política e Cultura Pop Japonesa

Algumas considerações sobre o engajamento político no entretenimento.

Godzila destruindo o prédio do parlamento japonês. Não é um "ataque à Democracia".

No dia 8 de março de 2024, quando foi anunciada a morte de Akira Toriyama (1955~2024), o criador de Dragon Ball, além de manifestações sinceras de pesar pelo mundo, houve também algo não muito nobre. Em canais e redes sociais, não faltou quem aproveitasse a evidência do nome de Toriyama para divulgar seus próprios credos e convicções políticas na base do viés de confirmação.


Na Esquerda e na Direita, pessoas usaram personagens e histórias de Toriyama para tentar definir como ele era politicamente, e sempre de modo tendencioso a fim de validar seus pontos de vista. Partindo desse caso, gostaria de exemplificar como é complicado classificar um autor japonês através de uma obra concebida nos anos 80 mediante conceitos atuais, portanto anacrônicos, no sentido de erro cronológico.


Dragon Ball tem uma cena clássica em que a Bulma (apresentada como tendo 16 anos no começo da série) vai mostrar a calcinha para o Mestre Kame, a fim de convencer o velho a dar uma valiosa Esfera do Dragão para ela. Mas ela não percebeu que estava sem calcinha, pois o Goku (ainda criança), curioso para saber o que tinha de diferente em uma menina (resumindo o caso), tira a calcinha dela quando estava dormindo, leva um susto com o que vê e fica apavorado.


Quando Bulma levanta sua roupa (vista de costas) para o Mestre, ele leva um susto e jorra sangue pelo nariz, um humor tipicamente japonês para mostrar a emoção que fez subir a pressão dele. Humor de moleque, inconsequente, incorreto e que nem era tão incomum no Japão dos anos 80. E é claro que é um humor que seria condenado pela Direita e pela Esquerda hoje em dia.


Alguém diria que a cena trouxe um humor viril e forjou o caráter de alguém? Ou iria apedrejar o autor por fazer graça com um comportamento inaceitável, ainda mais com uma menor de idade? Este foi somente um exemplo para citar como se deve ter cuidado ao classificar autores japoneses como progressistas ou conservadores. A maioria das obras japonesas não pode ser enquadrada nas visões políticas contemporâneas ou nos atuais embates entre "wokes" (os nerds "progressistas") e "nerdolas" (os nerds "conservadores").


Então, é preciso cautela, estudo e honestidade ao abordar visões de mundo em obras japonesas, ainda mais criadas em épocas passadas. Classificar precisamente a inclinação política de um artista japonês, ainda mais quando este não se define explicitamente, também é complicado.

Dragon Ball: Cena politicamente incorreta.

Um hábito que artistas japoneses em geral não têm é opinar sobre tudo o que acontece, ou mesmo se posicionar politicamente. É certo, também, que os que o fazem, geralmente se posicionam como pessoas de esquerda. Mas, ser de esquerda ou de direita no Japão é igual ao que isso representa no ocidente? É hora de voltar mais no tempo, ao menos até o período pós-Guerra.


Vindo de um severo sistema de monarquia autoritária, o Japão começou a ser democratizado pelos EUA quando se rendeu após os bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki, em 1945. O então Imperador Hirohito (1901~1989) renunciou a seu status divino e foi mantido vivo (e não julgado como criminoso de guerra) para manter o povo japonês unido e resiliente. A figura do Imperador passou a ocupar posição simplesmente cultural e cerimonial, sem qualquer tipo de poder.


Ocupado por forças lideradas pelos EUA, o Japão iniciou seu árduo processo de reconstrução, com pesados investimentos do Ocidente.

O prédio da Dieta, o parlamento japonês. (Foto: Britannica)

Após alguns anos sendo totalmente controlado pelas forças de ocupação, em 1951, o Japão se viu novamente uma nação independente e totalmente reformulado politicamente, com um sistema de monarquia parlamentarista.


Durante todo o processo de reconstrução e preparação para o novo sistema, houve uma grande aliança de políticos e do chamado Segundo Gabinete de ocupação com o crime organizado, a temida Yakuzá. Operando com seus próprios métodos, os grupos mafiosos ajudaram a manter certa ordem social, inclusive sufocando a ação de grupos de esquerda que desejavam uma aproximação do país com a China e seu regime comunista.


Em 1955, surgiu o LDP - Liberal Democratic Party, uma fusão de dois partidos de orientação conservadora, sendo portanto visto como um partido de direita. Porém, seu alinhamento internacional quase sempre foi com os liberais e o Partido Democrata dos EUA.


Desde seu início, o LDP é o partido mais poderoso do país, com o maior número de cadeiras na Dieta, que é como se chama o parlamento no Japão. Com apenas dois períodos de exceção (1993~94 e 2009~12), é o LDP que dá as cartas na política e economia do país. Com isso, quase todos os Primeiros-Ministros foram desse partido. Além disso, o Conservadorismo japonês está ligado às tradições japonesas (e não às ocidentais), suas hierarquias sociais e ao livre mercado, sendo também totalmente desvinculado de valores cristãos.


Sobre este assunto, vale dizer que o Catolicismo foi duramente perseguido e proibido no Japão no século XVII e sofreu golpe igualmente devastador quando Nagasaki foi atingida por uma bomba atômica, pois ela era a maior cidade católica do país e abrigava um seminário que estava formando diversos sacerdotes. O Catolicismo japonês nunca se recuperou e assim permaneceu, sem força alguma dentro da sociedade.


Com isso, o Japão tem uma legislação que permite o aborto desde sua Constituição pós-Guerra, promulgada em maio de 1947 e majoritariamente escrita por americanos, que almejavam formatar o povo japonês para o Liberalismo, essencialmente Humanista e anti-Cristão. Esses são os ideais que norteiam a Direita japonesa e qualquer tentativa de combater o aborto certamente enfrentaria resistência dos conservadores do LDP e seus apoiadores. Mas, e a ligação com a Yakuzá e a questão da governabilidade?



Em 1986, o livro YAKUZA, dos americanos David E. Kaplan e Alec Dubro, esmiuçou as origens das agremiações criminosas do Japão e mostrou, com fartos registros, incluindo fotográficos, as ligações da máfia japonesa com os mais altos escalões do Governo. Como essa relação avançou até os dias de hoje, porém, ainda é um tema a ser explorado. Portanto, não é estranho que muitos japoneses tenham desconfiança de seus governantes.


Com uma Direita historicamente ligada a grupos mafiosos, e com seu alinhamento com os interesses dos EUA, acabou sendo um caminho natural para muitos intelectuais buscar o pensamento de esquerda. Porém, será correto imaginar que ser de esquerda no Japão é igual ao que vemos por aqui? Não exatamente.


O diretor Hayao Miyazaki, grande crítico da tecnologia substituindo o trabalho humano, se diz alguém de esquerda, mas isso não faz dele um Socialista e anti-Capitalismo, nem um apoiador de causas identitárias. Ele também nunca se preocupou em ser um autor global, mas sim em contar histórias que fossem significativas para os japoneses.


Certamente, ele fica feliz quando é reconhecido fora de seu país, mas sempre deixou claro que produz para seu povo, sendo avesso a demonstrações de retidão ou superioridade moral. [Nota: Sobre isso, há uma declaração interessante dele no post "A Filosofia de Mestres do Mangá e do Animê".]

O Kamen Rider original.

Em outro exemplo, o grande Shotaro Ishinomori (1938~1998) foi um autor certamente progressista, e em sua obra Kamen Rider (1971), ele mostra os perigos do mau uso da Ciência em nome de uma tecnocracia, um governo moldado cientificamente, fascista e totalitário. Esse tema, trazido aos dias de hoje, mostra muito mais os temores de conservadores do que de progressistas. Pode-se apontar as críticas de Ishinomori com relação a um governo totalitário, mas jogar isso em um posicionamento de esquerda ou direita tendo em vista o cenário político ocidental atual é tanto uma armadilha quanto uma desonestidade.


Também não é possível ir além de especulações para imaginar como Ishinomori ou outros autores já falecidos estariam lidando com temas como a Inteligência Artificial ou a Agenda 2030 da ONU.


Para ilustrar o estranhamento ocidental em se entender os autores japoneses, vamos recorrer a um exemplo antigo. Em algum ponto dos anos 80, em uma convenção de ficção científica nos EUA, uma atriz de Star Trek - série clássica, Majel Barrett-Roddenberry (1932~2008) fez um comentário sobre Star Blazers, a adaptação americana de Uchuu Senkan Yamato, que conhecemos aqui como Patrulha Estelar.


A artista disse na ocasião que tanto Star Trek quanto Star Blazers vislumbravam um futuro multirracial (a palavra diversidade não estava em voga), com suas tripulações diversas. A nave Enterprise tinha mesmo uma tripulação multirracial, mas não a Argo, ou melhor, o Yamato. Majel Barrett conheceu a versão adaptada, com nomes alterados.


Nos EUA, os heróis da Patrulha Estelar ficaram conhecidos como Derek Wildstar, Nova (aqui, Lola), Marc Ventury, Sandor, Rohmer, Conroy e outros. Porém, esses eram apenas nomes adaptados dos originais Susumu Kodai, Yuki Mori, Shiro Sanadá, Aihara, Kato e outros, respectivamente. Ela não deve ter notado que não havia um único negro e havia somente uma mulher na tripulação, que originalmente é toda formada por japoneses, apesar dos cabelos coloridos. Ou seja, no futuro vislumbrado por Leiji Matsumoto (1938~2023), o multiculturalismo não se fazia presente. O discurso equivocado da atriz deve ter sido aplaudido por muita gente que não conhecia direito a história da série, que tem um profundo senso de patriotismo e militarismo embutido.

Patrulha Estelar: Tripulação multirracial?

Mesmo autores que já se disseram de esquerda, defendem através de suas obras a meritocracia, um valor tipicamente de direita na visão ocidental. O vitimismo social geralmente não é bem visto e as obras da demografia shonen (para garotos adolescentes) ensinam o público a lutar e se esforçar no limite, sem jogar nos outros a culpa por seus eventuais insucessos.


É importante ressaltar que existem sim obras que criticam as tradições, relações sociais e uma série de valores, mas geralmente são obras adultas. Com uma educação e um tecido social que condenam qualquer ato que incomode o próximo, manifestações de ativistas de minorias não procuram afrontar símbolos religiosos ou chocar as pessoas. O confronto por motivações políticas ou ideológicas não é incentivado e a polarização lá nunca atingiu os patamares agressivos vistos no Ocidente.


Quando surgem discussões envolvendo a sexualização de personagens femininas por formas generosas ou roupas provocativas, essas geralmente vêm de ativistas ocidentais. E quando surgem tais discussões, o público, independente de qual orientação política seja, pede que a liberdade dos autores seja respeitada. E não basta respeitar, é mais importante ainda evitar a instrumentalização de obras para defender crenças e agendas políticas, porque essa coisas, em geral, funcionam e são concebidas de forma diferente no Japão. Nem tudo é sobre política, contrariando o que dizem alguns criadores de conteúdo por aí.

One Piece comunista? Hum... não mesmo!

Em 2023, especialmente após uma palestra no evento CCXP, correu nas redes sociais a teoria do "One Piece Comunista", mesmo que o próprio autor Eichiro Oda tenha declarado que não passa mensagens políticas em suas histórias. Essa desonestidade intelectual foi amplamente refutada pelo canal Nova Gênese, em um vídeo bastante interessante que mostra o que One Piece não é, sem no entanto querer promover um lado do espectro político.


Uma coisa importante a se destacar é que visões políticas aparecem bastante em obras da cultura pop japonesa, mas geralmente de forma não óbvia e não panfletária, como seria uma lição de moral dita a uma criança.


Nas séries do Universo Ultra, especialmente em clássicos assinados por Tetsuo Kinjô (1938~1976) e Shozo Uehara (1937~2020), haviam muitas mensagens políticas. Ambos conheceram o preconceito racial no Japão metropolitano por serem oriundos de Okinawa, região do extremo sul do país e que foi um reino independente até ser formalmente anexado no século XIX. Havia também críticas à modernidade, alusão aos crimes de guerra do Japão, ao militarismo, além da inclusão de símbolos cristãos. Mas tudo isso era transmitido nas aventuras sem perder de vista o entretenimento e a emoção ao se contar uma história.

O Regresso de Ultraman: Mensagens políticas em uma série emocionante.

Obras de orientação política mais agressiva e alinhadas com o atual progressismo ocidental, como Kamen Rider BLACK SUN (2022), são muito mais a exceção do que a regra.


Em Shin Godzilla (2016), o roteirista Hideaki Anno mostra o quão nocivos e mesquinhos podem ser os políticos (sem levantar bandeiras ideológicas), mas faz a ressalva de que até eles podem ter entre os seus pessoas capazes de se empenhar pelo bem de seu país. Godzilla, já em seu primeiro filme, de 1954, apresentava um discurso contra políticos em geral, além da mensagem pacifista e alusão ao pesadelo nuclear. O filme original tem até uma cena onde o monstro destrói o prédio da Dieta, algo que já se repetiu algumas vezes na cultura pop japonesa.


Já no clássico mangá Rosa de Versalhes (1972), a política na época da Revolução Francesa é abordada de maneira direta, tendo sido fruto do movimento da Nova Esquerda no Japão. Porém, a obra é igualmente lembrada por sua estética visual, que influenciou fortemente toda a indústria do mangá shojo (para garotas).


Neste caso, é correto afirmar que Rosa de Versalhes é uma obra de esquerda, fortemente progressista e influente, sendo um produto do período de efervescência política em que viveu a autora Riyoko Ikeda. Tentar relativizar o progressismo de Ikeda seria tão desonesto quanto relativizar o nacionalismo de Hideaki Anno, que nem de longe pode ser visto como um conservador.

Rosa de Versalhes: Tragédia ambientada na Revolução Francesa.

Na saga Gundam (1979), concebida por Yoshiyuki Tomino, a política é colocada em destaque nas histórias, e as mortes de civis nas guerras não deixam dúvidas de que a mensagem geral gira em torno da importância da paz. Ainda que, paradoxalmente, haja um verdadeiro culto ao maquinário bélico realista mostrado na franquia. A questão das casualidades civis é marcante em obras japonesas sobre a guerra, reflexo de um país que sofreu com o bombardeio e o sacrifício de inocentes.


No geral, por mais que quaisquer obras de arte ou entretenimento carreguem as visões de mundo de seus autores, ainda prevalece no Japão a ideia de se evitar trabalhos panfletários e preservar o foco no desenvolvimento de personagens.


Uma obra que em sua maior parte defenda valores tradicionais japoneses ou mesmo ocidentais, também pode ter seus pontos de progressismo (ainda mais em questões ligadas à sexualidade), bem como uma obra progressista (na visão ocidental) pode trazer embutidos valores tidos como universalmente conservadores. Cheias de nuances, muitas obras japonesas são impossíveis de classificar com facilidade em um lado bem definido, em meio à polarização raivosa que dominou cada setor da sociedade ocidental.


Como no Ocidente cada vez mais as peças de entretenimento se alinham com as mesmas agendas políticas, o Japão parece um dos últimos lugares onde os autores ainda se preocupam em contar boas histórias. Com menor ou maior grau de abordagem ideológica, o mangá, o animê e o tokusatsu geralmente trazem histórias com foco no desenvolvimento de personagens e na utilização de valores perenes como sendo virtudes a serem transmitidas.


Leia também:


Gundam: O horror da guerra.
 

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