Conheça a história de uma famosa canção que homenageia Okinawa, o paraíso tropical do Japão e que foi inspirada por uma grande tragédia local.
Última região a ser anexada ao território atual do Japão, no século XIX, o arquipélago que forma a província de Okinawa (沖縄県 ou "Uchiná" em dialeto local) fica no extremo sul do país. Com uma cultura regional bastante diferenciada, o povo de Okinawa possui um forte sentimento de união, muitas vezes sendo visto como algo à parte do resto do Japão. O povo possui traços físicos ligeiramente diferentes da maioria que compõe a nação japonesa, com pele mais morena e olhos maiores, entre outros traços étnicos.
Durante muito tempo, foi uma cultura hermética, meio isolada do resto do mundo e do próprio Japão. Mas uma canção pop ajudou a mudar isso, na primeira metade dos anos 1990. Era "Shima Utá", ou "Canção da Ilha", interpretada pela banda de pop-rock The Boom. O termo shima uta (leia "shima utá") fora trazido da região de Amami para Okinawa e foi adotado como uma definição para sua música folk regional. E foi esse também o título escolhido para batizar a música que se tornaria a mais emblemática da jovem banda que unia rock com o ritmo ska, mas que também queria agregar sons diferentes a seu repertório.
Formada em 1986 por Kazufumi Miyazawa (voz), Takashi Kobayashi (guitarra e vocais), Hiromasa Yamakawa (baixo e vocais) e Takao Tochigi (bateria), The Boom surgiu na cidade de Yamanashi. Mesmo sem ascendência okinawana, Miyazawa capturou o espírito do povo uchinanchú (como os okinawanos se definem) e sua composição estourou nas paradas de sucesso, com sua curiosa mistura de rock com o tradicional canto estilo min´yô.
Em 12 de dezembro de 1992, pela Sony Records, saiu a primeira versão da canção, parte em japonês, parte em uchiná-guchi, o dialeto local de Okinawa. Em 21 de junho de 1993, saiu a "versão original", já que a música fora primeiro escrita apenas em japonês. Com sua mistura inspirada de pop-rock e o tradicional estilo de canto min´yô, foi um sucesso estrondoso e o single vendeu mais de 1.500.000 cópias, sendo um dos grandes hits daquele ano.
A música fala das belezas de Okinawa, mas também fala de despedida e separação. A inspiração veio quando Kazufumi Miyazawa visitou o Himeyuri Peace Museum, em Okinawa, dedicado às enfermeiras - a maioria estudantes - que foram mortas ou se suicidaram na região durante o final da Segunda Guerra Mundial.
O povo de Okinawa foi muito castigado durante o conflito, tendo sido praticamente sacrificado pelo Império Japonês. Os jovens foram levados pelo exército imperial para lutar contra os aliados, enquanto mulheres, crianças e idosos ficaram para defender o lar. O famoso Encouraçado Yamato foi destacado para proteger Okinawa, o que seria sua última missão.
A chegada de tropas americanas no arquipélago, pouco protegido, levou a uma carnificina hedionda. Foram mais de 200.000 vítimas fatais, sendo que grande parte dos civis mortos cometeu suicídio seguindo as ordens imperiais.
Doutrinados para a lealdade a um Imperador que era aclamado como Deus e assustados pela proximidade do inimigo desconhecido, pais de família detonavam granadas abraçados a seus filhos enquanto jovens enfermeiras se matavam de forma igualmente brutal. Tudo para não serem capturados pelos americanos, conforme as orientações que receberam.
O resultado foi um banho de sangue de inocentes mortos sem motivo ou de forma covarde. Parte dessa triste história foi narrada na canção Satoukibi Batake (さとうきび畑, ou "Canavial"), composta por Naohiko Terashima e grande sucesso na voz de Ryoko Moriyama em 1969.
A tragédia de Okinawa causou muitos ressentimentos e um sentimento de revolta entre okinawanos, que se sentiram usados e abandonados pelo resto do Japão. Houve também, no passado, muito preconceito racial dos japoneses contra os okinawanos e vice-versa, devido às suas diferenças culturais e étnicas. A presença militar americana - parcialmente mantida mesmo após Okinawa ser devolvida ao Japão no início da década de 1970 - também impôs um pesado fardo ao povo local, prolongando os ressentimentos pelos tempos da guerra.
Com o tempo, as cicatrizes foram sendo curadas e as relações melhoraram. Atualmente, existem grandes nomes do entretenimento japonês nascidos em Okinawa, como os músicos Namie Amuro, Camui Gackt, BEGIN, Yanawaraba e Rimi Natsukawa, entre outros. Nesse processo, a música Shima Uta foi essencial para uma aproximação através da arte. Miyazawa se disse muito emocionado pela visita à Okinawa, que abriu seus olhos para uma parte da História que ele mal conhecia, sem contar as belezas da região e sua cultura.
Ele nunca escondeu o que o inspirou a escrever a canção e os versos que falam de despedida e anseio de paz ganham conotações fortes e muito sentimentais. Os toques do instrumento tradicional sanshin, ouvidos na música, também divulgaram ao resto do país o som do ancestral okinawano do shamisen, mais conhecido mundo afora.
Velhos ressentimentos foram melhor encarados e não é exagero dizer que Okinawa se incorporou definitivamente à cultura popular japonesa graças ao The Boom. Shima Utá foi a mais famosa canção da banda, que se manteve em atividade até 2014, reunindo-se algumas vezes depois da separação oficial.
Muitas versões foram feitas desde o lançamento da música, incluindo por estrangeiros, como o argentino Alfredo Casero, a jamaicana Diane King e os americanos Andrew W.K. e a banda Allister. A composição de Miyazawa marcou para sempre a carreira do talentoso músico, que já criou canções para vários artistas de seu país.
Nascido em 18 de janeiro de 1966, Miyazawa é apaixonado não só por Okinawa, mas também por música brasileira, tendo já feito show com The Boom em São Paulo, em 1996. Fluente em português, possui um projeto pessoal chamado Ganga Zumba, onde mistura ritmos brasileiros, latinos e caribenhos, tendo como colaborador o renomado percussionista carioca Marcos Suzano. Mas aonde quer que vá, é por Shima Uta que ele é reconhecido e aclamado em primeiro lugar.
Tendo surgido como homenagem a um povo que sofreu uma grande tragédia, Shima Utá carrega sentimentos de nostalgia e pacifismo. Sua parte final, que evoca dança e festividade, é parte da mensagem do autor, que inspira otimismo depois de ter encarado a tristeza e a dor.
"Shima utá" - The Boom Letra e melodia: Kazufumi Miyazawa
::: E X T R A S :::
- Uma das canções japonesas mais regravadas de todos os tempos, é difícil eleger quais as melhores interpretações. Aqui, a opção foi pela variedade de estilos nas versões, todas muito respeitosas com a original.
1) Rimi Natsukawa - Grande estrela de Okinawa que alcançou a fama com a canção "Nada Sousou" ("Lágrimas escorrendo"), Rimi aparece aqui cantando e tocando sanshin. Algumas palavras são do dialeto de Okinawa, como o termo "kaji" ("vento"), que em japonês é "kazê".
2) Gackt e Sadao China (2009) - Aqui, o astro do J-Rock oriundo de Okinawa, Gackt, faz uma solene interpretação de Shima Uta, com um veterano do tradicional estilo min´yô a seu lado. Gackt deixa o rock de lado e registra uma versão solene e impregnada de respeito às tradições.
3) André Matos (2000) - Gravado no Pavilhão Japonês do Parque Ibirapuera, em São Paulo/SP, e exibido no programa Imagens do Japão, o vídeo é uma raridade disponibilizada por um fã. André Matos (1971~2019), lendário vocalista das bandas Viper, Angra e Shaman mostra todo seu respeito pela cultura japonesa. E ele também era admirado no Japão, a ponto da banda de metal Unlucky Morpheus ter lhe dedicado uma canção quando soube de seu falecimento. No vídeo, André Matos é acompanhado por outros grandes nomes do rock, como Kiko Loureiro (guitarra) e Andria Busic (baixo).
****************************
- Apoie o meu trabalho, doando qualquer valor a partir de R$ 5,00 e incentive a continuidade do Sushi POP. Se preferir, tem o PIX: nagado@gmail.com
Compartilhe este post em suas redes sociais!